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A Montanha de Ouro e o Quadrado Redondo

Atualizado: 20 de mar. de 2022


Alexius Meinong chocou o mundo no início do século XX afirmando alegremente a existência de objetos não existentes: em sua ontologia, coisas como montanhas de ouro, quadrados redondos e unicórnios são tidas como reais. Segundo Meinong, já que é possível falar a respeito de objetos não existentes, eles devem possuir alguma forma de existência, mesmo que seja em algum outro mundo possível. O repositório de tais objetos inusitados é comumente chamado de “selva de Meinong”.


A teoria do realismo modal de David Lewis ajuda a dar sustento a essa tão simpática ontologia. Lewis traduz a sentença: “unicórnios poderiam existir” por “existem unicórnios em outro mundo possível”. Como eu costumo dizer, Leibniz pode ter se equivocado ao afirmar que nós vivemos no melhor dos mundos possíveis, já que aparentemente não habitamos o mundo dos unicórnios.


Em seu livro “On the Plurality of Worlds” o autor defende a existência de seres como dragões e burros falantes. Trata-se de uma leitura bastante edificante, na qual o autor nos lembra que há mundos possíveis nos quais nós somos ovos cozidos. Infelizmente, o autor aponta a dificuldade ou impossibilidade de haver contato entre esses mundos e nos lembra que há um preço a pagar para entrar nesse paraíso filosófico.


Em suas palavras:

“Algumas de nossas opiniões são mais firmes e menos negociáveis do que outras. E algumas são mais ingênuas e menos teoréticas do que outras. E parece haver uma tendência para as mais teoréticas serem mais negociáveis”


O quadrado redondo é particularmente problemático, pois aparentemente trata-se de uma contradição lógica. A teoria de objetos de Meinong gerou debates no campo da filosofia da linguagem, mas o quadrado redondo parece violar a lei da contradição (a segunda das três leis clássicas do pensamento), a qual nos diz que afirmações contraditórias não podem ser ambas verdadeiras, no mesmo sentido e ao mesmo tempo. Mas é claro que uma definição como essa dá espaço para muitos malabarismos epistemológicos.


Há muitos outros sistemas de lógica em uso hoje em dia além da lógica clássica aristotélica, especialmente para complementá-la. A lógica modal, conforme foi previamente referida, acrescenta o princípio da possibilidade. Eu sou um ser humano nesse mundo possível, mas eu poderia ter sido um ovo cozido. E Lewis defende que, de fato, existe um mundo em que eu sou um ovo cozido e isso não contradiz o fato de eu ter forma humana nesse mundo.


Uma possível solução para o problema dos objetos não existentes é a “estratégia da cópula dual”. Na cópula do quadrado redondo é dito que o quadrado redondo possui a propriedade de ser redondo, a propriedade de ser quadrado, todas as propriedades sugeridas por essas duas e nenhuma outra. Ele não clama a propriedade de existência física, mas apenas de existência. Eu não posso ter ao mesmo tempo uma maçã que é uma banana, ou duas maçãs que são quatro maçãs, mas eu posso construir um sistema axiomático em que dado número tenha a propriedade de ser 2 e também de ser 4 (se certas condições forem estabelecidas) se isso for interessante e divertido. Para mais detalhes a respeito dos jogos axiomáticos, leia o post “Mudança de Paradigmas na Ciência“.


É claro que se eu mudo as regras do jogo atual, isso resultará num jogo diferente. Por isso David Lewis nos alerta que, embora possamos negociar especialmente a parte teórica, há um preço a pagar. Você quer tanto assim um quadrado redondo? O que está disposto a sacrificar por ele? Até mesmo axiomas clássicos da matemática? Só porque os teoremas da incompletude de Gödel estabelecem limitações a variados sistemas axiomáticos, você acha que pode criar triângulos retangulares apenas para jogá-los numa selva bastante exótica e encontrar dificuldades sérias para visitá-los?


Talvez você queira me dizer: “Eu prefiro uma montanha de ouro do que um quadrado redondo!” mas eu garanto que incontáveis filósofos sacrificariam essa tentação para em vez disso conquistar o lendário quadrado redondo (cuja existência é bem mais difícil de provar!), que, assim como a quadratura do círculo, tem atormentado mentes desde a Antiguidade. Segundo Emanuel Swedenborg, a quadratura do círculo, por exigir um número infinito de etapas, só poderia ser feita por Deus, que é infinito.


E já que falamos de Deus, o termo “quadrado redondo” já foi bastante usado exatamente para referir-se a algo que Deus não pode fazer. Tomás de Aquino diz que até mesmo um Deus onipotente não pode realizar atos logicamente impossíveis, como criar um triângulo quadrado ou uma pedra que nem mesmo Deus pode erguer (paradoxo da força irresistível). Contudo, devemos lembrar que a filosofia escolástica, e particularmente São Tomás, se basearam fortemente na lógica aristotélica.


Através da lógica modal podemos simplesmente colocar o quadrado redondo na selva de Meinong ou num dos mundos possíveis de Lewis. Alguns ainda se aborrecem com essa solução, já que não acreditam em mundos como esses, uma vez que nunca houve nenhum relato de alguém que tenha pisado nesses lugares e retornado são a nosso mundo. Também nunca ouvimos relatos de alguém que tenha visitado o mundo das ideias de Platão, com seus círculos perfeitos e entidades numéricas, mas as pessoas usam os números mesmo assim porque, independente de existirem ou não, eles são práticos.


Quem sabe, se alguém encontrar uma utilidade para o quadrado redondo, ele seja promovido ao respeitável reino dos objetos existentes. Uma solução elegante seria utilizar o quadrado redondo para resolver o problema da quadratura do círculo e matar dois coelhos com uma só cajadada. Possivelmente isso exigiria um ato de magia negra tão grandioso do qual somente demônios poderiam se ocupar.


Existem incontáveis teorias ontológicas bizarras (e perdidamente adoráveis!) pairando por aí. Uma das minhas favoritas é a de Berkeley, apresentada em “Três Diálogos entre Hylas e Philonous”. Berkeley defende que o mundo material não existe. Segundo ele, acreditar que a matéria possui existência absoluta é uma visão mais cética do que acreditar que a matéria depende da mente, pois dar uma existência absoluta à matéria seria considerá-la eterna e segundo Berkeley é eterno somente Deus e as almas. Os objetos só não desaparecem instantaneamente quando paramos de olhá-los porque Deus está sempre olhando para tudo.


Por que teorias que defendem a existência de objetos inexistentes e questionam a existência dos objetos existentes são tão importantes? Por uma simples razão fundamental: devido à crença atual quase irrestrita no materialismo.


Na época em que vivemos é comum acreditarmos que o mundo material é real e não questionamos isso. Não nos perguntamos seriamente se isso é realmente verdade. Simultaneamente a essa crença está a descrença em realidades espirituais como Deus e espíritos. Normalmente, partimos do pressuposto de que o transcendente não existe e de que a mente é uma mera extensão do cérebro.


Ao longo da nossa história, o materialismo foi bastante raro. Houve os charvakas na Índia, que perderam a continuidade de sua tradição por volta do século XII. Houve também tradições chinesas, mas no que diz respeito à filosofia ocidental, além de alguns pré-socráticos só se ouviu falar disso novamente de forma consistente por volta do século XVIII.


Ainda assim, muita gente toma como óbvio que o materialismo é evidente. E muitos que afirmam não crer no materialismo, agem como se ele fosse a verdade.


Muitas pessoas religiosas ao nosso redor, ou que simpatizam com religiões como cristianismo, budismo, hinduísmo ou qualquer outra, embora aceitem os princípios de sua religião, não compreendem de verdade no que isso implica. Ou aceitam esses princípios apenas superficialmente, sem se preocupar em aplicá-los na vida diária.


Os budistas afirmam que esse mundo é uma ilusão. Então por que tantos budistas se comportam como se não fosse, se apegando a tantas coisas? Os cristãos acreditam que existe Deus e vida após a morte, então por que ficam sempre tão ansiosos com as coisas desse mundo, com medo de adoecer e com medo de ficar sem dinheiro? A crença em Deus deveria bastar para se ficar em paz. Por que é tão difícil encarnar esses ensinamentos?


Eu acredito que a razão principal disso é que o materialismo está tão impregnado em nossa mente, a ponto de atingir os ossos, que não nos permite viver de outra maneira. Creio que o estudo aprofundado de metafísica é um bom começo para passarmos a exorcizar o materialismo de nossas mentes, tendo em vista encará-lo como apenas uma possibilidade dentre um universo de outras teorias.


Infelizmente, muitos daqueles que acreditam em Deus e alma geralmente encaram isso de forma subjetiva. Veem Deus como apenas algo dentro deles e não fora. Acham que céu e inferno são metáforas. É verdade que para religiões como budismo e hinduísmo é preciso quebrar a nossa noção de identidade (destruindo a separação entre aquilo que há dentro de mim e fora de mim), mas religiões como as abraâmicas exigem a crença nessa separação objetiva. Posteriormente devemos nos esvaziar de nós mesmos pela humildade para que reste apenas a presença de Deus em nós, mas antes disso é preciso respeitar a metafísica da religião, para que tal etapa seja possível.


Para que o budista possa avançar em sua espiritualidade, ele deve acreditar que a existência do mundo constitui apenas agregados mentais. Ele não deve apenas aceitar isso superficialmente. Deve acreditar com todas as suas forças. As experiências meditativas irão dar-lhe uma noção mais forte dessa realidade, mas em todo o tempo em que não estiver meditando o budista deverá estudar sua religião seriamente para se munir de argumentos lógicos fortes que provem que é racionalmente aceitável que as coisas materiais não tenham uma “coisa em si”, tal como defendido por Berkeley.


O judeu, cristão ou muçulmano deverá crer profundamente, “de todo seu coração, de toda sua alma, de todas as suas forças e de todo seu entendimento” (como diz Lucas) que Deus existe como realidade objetiva e transcendente fora da mente, e não somente como alma dentro de nós. Deus também deve ser entendido como estando dentro de nós, mas essa é sua parte imanente. A religião só faz sentido quando se crê na realidade espiritual (nem material e nem conceitual) de Deus.


Isso tudo também tem relação com o velho problema dos universais, que remonta a Platão, e tem como possíveis soluções posições como realismo, idealismo e nominalismo. A posição de muitas religiões sobre realidades espirituais é o realismo: a “ideia Deus” como realidade no mundo das ideias platônico, ou mundo espiritual, que contraria a visão de Deus como ideia na mente (idealismo) ou nome, mera definição (nominalismo). Por isso, querer usar a definição de “quadrado redondo” para promovê-lo ao mundo dos objetos existentes é um salto ousado, mas possível.


Tentar entender uma religião não materialista adotando um paradigma materialista só poderá resultar em fracasso. Será como tentar beber uma sopa com um garfo. Por mais que você se esforce, enquanto não estiver determinado a realmente abandonar as suas crenças as quais sempre foi tão apegado, não obterá um real progresso. E começará a chamar essas religiões de supersticiosas e ilógicas, incapaz de identificar as próprias superstições dentro de você.


A maior parte das religiões ou sistemas de crenças espirituais não têm o objetivo de dizer que o mundo material é sujo e cruel. No cristianismo é dito que o nosso mundo é bom, Deus o criou e viu que era bom. Nós podemos ter prazeres nesse mundo, mas o prazer não é tudo que existe e tampouco é o objetivo da vida. Há outro mundo além desse e ele não existe apenas dentro de sua mente. Você possui uma alma imortal, que não deve ser entendida de forma metafórica. Já o budismo diz que a vida é sofrimento, mas também diz que o nascimento humano é o ideal para alcançar o objetivo da vida (a Iluminação) já que nós não sentimos tantas dores como os demônios e nem tanta paz como os anjos, podemos nos focar no nirvana.


No momento em que você opta por certo sistema de crença, não deve tentar interpretá-lo como um curioso desapaixonado. Deve ser como um antropólogo, que tentará pensar como eles, viver como eles, comer como eles. E não praticá-lo pela metade, doando apenas uma parte de você. A entrega mental deve ser total.

É claro, você não tem tempo para isso, precisa estudar, trabalhar e ter lazeres, mas você pode fazer tudo isso e ainda realizar a entrega mental, que exige sacrificar apenas uma coisa muito preciosa para nós: o orgulho de pensar que já sabemos o que é o mundo.


Os magistas do caos geralmente conseguem se adaptar a um grande número de sistemas de crença, porque embora não interpretem literalmente o “Nada é verdadeiro, tudo é permitido”, eles investigam seriamente suas possibilidades. Eles sabem que o materialismo não é o único paradigma existente e nem o melhor. Sabem que até mesmo a lógica e a matemática estão sujeitas a falhas e nossos sentidos físicos podem nos enganar. Como nos lembra a Teoria do Caos, uma montanha não é um cone perfeito. Não existem círculos perfeitos na natureza. Tomar a matemática como “verdade” e o mundo material como “real” sem maiores investigações, não é muito diferente de uma crença cega.


Em que mundo você prefere viver? Um mundo de unicórnios, montanhas de ouro e quadrados redondos? Ou um mundo de prazer material que termina com a morte? Para a pergunta “Céu é escapismo?” responde C.S. Lewis: “Quem fala mais contra ‘escapismo’? Carcereiros”. Enquanto uma pessoa tenta escapar para o céu, a outra tenta escapar com os prazeres dos sentidos. Mas enquanto tentarmos meramente escapar de alguma coisa, nós estaremos nos aprisionando ainda mais.


No momento em que nos propusermos a uma busca honesta pela verdade, aliando razão, emoção, experiências dos sentidos e uma mente aberta, não haverá o que temer: nem burros falantes e nem ovos cozidos. É claro que pode ser assustador desafiar nossas concepções de mundo. David Lewis não disse que o processo seria de graça. Pode ser bastante doloroso agora, mas lá no horizonte há uma montanha de ouro. E, se você tiver sorte, unicórnios.


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